terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Uma “revolução silenciosa”...

O bom professor, o bom livro e a boa escola. Quando será...? (1)

Ricardo B. Marques

Num recente encontro de autores de livros didáticos, estive conversando com uma colega, autora de uma coleção de Ciências para o Ensino Fundamental II (5ª a 8ª série), aliás ótima profissional com mestrado pela PUC-SP. Durante o bate-papo, a referida colega lançou-me uma dúvida: ela queria saber como eu, na qualidade de autor e professor alinhado com o que se costuma chamar de ensino crítico, me relaciono com o fato – já tão comentado nos congressos de Educação – de Fortaleza ser talvez o mais expressivo foco brasileiro onde resiste o ensino tradicional [utilizo esse termo por já ser de uso comum, embora saiba que o adjetivo “tradicional” tenha várias aplicações, algumas bem positivas, diga-se de passagem; é que os rótulos são uma coisa muito complicada, especialmente nessa área].

Para os não familiarizados com o assunto, é oportuno explicar que há um princípio, já testado e bem estabelecido no meio educacional do país e do mundo, de que o ensino numa abordagem tradicional (quero dizer, o que enfatiza a simples “transmissão de conteúdos”) é um erro grave, que tem causado distúrbios de aprendizagem e fracasso escolar, entre outros males, além de não formar ninguém, a não ser meros repetidores de informações desarticuladas. Os gatos-pingados que, estudando sob tal sistema, não foram por ele tão vitimados, ou é porque se indispuseram contra o mesmo (estes terminam marginalizados, como o foram grandes nomes da Ciência) ou conseguiram enfrentá-lo em silêncio, para se manterem aceitos no sistema, contudo mantendo uma “rebelião interior”.

Pois é, ainda que esteja bem estabelecido o princípio do ensino crítico – ou seja qual nome se dê para esse movimento pelo ensinar a pensar – , quando trafegamos pelas salas de aula de vários bons colégios brasileiros, em particular alguns fortalezenses, nos deparamos na prática (nem sempre no discurso) com a velha transmissão de conteúdos. Em tempo: não vamos nos desgastar aqui comentando sobre o ensino que se volta só para o vestibular, que é uma faceta ainda mais medonha do dito ensino “tradicional”.

Na conversa com a colega autora e professora, expliquei-lhe que, para mim, o relacionamento com esse tipo de sistema não é fácil (e ela já devia saber disso, pois em São Paulo as coisas não são tão melhores...), mas que aprendemos a suportar à medida que amadurecemos. Trata-se, infelizmente, da realidade da vida e dos fatos: o sistema está aí, buscamos mudá-lo, mas enquanto isso não se consuma precisamos tanto de rebeldes radicais quanto daqueles que vão fazendo uma espécie de “revolução silenciosa”. Se todos simplesmente nos abstemos de construir de dentro para fora para ficar apenas jogando pedras de fora para dentro, a transformação – se acontecer – vem muito mais lentamente, em minha opinião.

A conversa me fez retomar algumas reflexões, e instigou-me a levantar o tema e a bandeira na forma de um artigo, e tentar enviá-lo, como costumo fazer com outros textos, para pessoas sensíveis e para ambientes propícios, onde fervilham as idéias do mundo da Educação. No texto, atrevo-me mais uma vez a emitir minha opinião, compartilhando-a com tantos amigos e colegas; contudo, preferi restringir a abordagem ao que penso deva ser o papel do professor, na sua postura pedagógica e no uso do livro didático.

Surpreendem-me alunos, pais e até escolas que julgam ser um bom professor aquele que, de giz ou pincel na mão, copia no quadro e verbaliza o que já está no livro, às vezes se prestando ao papel de, no máximo, resumir a abordagem descritiva dos fatos já conhecidos. Arriscando ser acusado de grosseiro, devo dizer que isso é chamar o aluno e o professor de “burros”, já que, pela lógica, essa maneira de “ensinar” assume de antemão ser o aluno incapaz de ler e interpretar o livro (não deveriam ser OS livros?), e que o professor não passa de um papagaio, um repetidor, incapaz de induzir questionamentos, produzir reflexões, suscitar discussões e gerar conhecimento. Não é triste saber que há muito a ser dado e feito, mas que o sistema não quer assim? Não é chocante assistirmos à mediocridade travestida de excelência, um ensino ruim travestido de bom ensino, e tanta gente achando tudo isso muito legal?

O papel do professor NÃO É o de repetir sonoramente, como um gravador, os conteúdos descritos nos livros “didáticos”. A função básica do livro didático – mas há outras – deveria ser a de servir como uma fonte de consulta, de leitura e de exercício para o aluno, paralela a várias outras consultas, leituras e mesmo exercícios realizadas em e por meio de paradidáticos, revistas, jornais, Internet, debates, discussões, excursões, investigações etc. A utilização do livro didático deveria vir como uma ação pedagógica, inserida num contexto mais amplo de diversas outras ações integradas. É o conjunto de ações pedagógicas bem planejadas e interligadas, partícipes de um projeto pedagógico maior e bem planejado para a disciplina, que nos permite ajudar o aluno a compreender a ciência e o pensamento, a ver significado nos conteúdos e ser capaz de articulá-los.

O professor que faz do “livro-texto” (termo em iminência de ser abolido da Educação) o principal foco de seu trabalho com os alunos, em qualquer nível de ensino, e que direciona o programa de sua disciplina ao conteúdo e às atividades propostas no livro, está fadado ao completo fracasso em seu projeto de obter aprendizagem significativa. O que se chama por aí de “livro-texto”, se for elaborado coerentemente com o que se sabe hoje ser Educação de fato, nas mãos de um “professor de verdade” funcionará como deve ser, isto é, uma fonte de consulta agradável, um despertador para acordar a mente, um “manual de bordo” para uma instigante viagem pelo mundo do conhecimento, cheio de surpresas e aventuras de pensamento... Não um monte de informações reunidas, numa abordagem descritiva e com o objetivo de ser memorizadas para que o aluno “passe de ano”.

Falando em “passar de ano”, nos vêm à lembrança as famosas “notas e provas”. Num bom livro didático, há muita coisa que precisa estar ali, mas que não é para o professor “cobrar em prova”, como infelizmente ainda se costuma dizer em muitos colégios. Está no livro por outros motivos, como fonte de consulta, por exemplo, e é obrigação do professor rever sua perspectiva de avaliação (e da sua escola), bem como ser suficientemente sensível para discernir o que, quando e como ele deve avaliar, sem ater-se a supostos ditames de um “livro-texto”.
O papel do autor de um livro didático, por sua vez, NÃO É o de colocar no papel uma coletânea de informações sobre o tema daquele nível de ensino, no intuito de que o aluno memorize as informações para poder sair-se bem nas provas que enfrentará. É grande a pressão por parte de alguns professores – evidentemente ainda afeitos à falecida prática de que ensinar é “transmitir conteúdos” – para que o livro didático seja elaborado de forma a:

· conter o principal da “matéria” que o professor deverá “transmitir” (leia-se “repetir como papagaio”);
· que ele não tenha o trabalho de estudar e de se atualizar para poder usar o livro e “dar a matéria” (é notório o problema de desatualização e de falta de conhecimentos de muitos de nossos professores, tanto nas universidades quanto nos colégios);
· que ele não fique obrigado a ter de responder coisas cujas respostas não estão explícitas no livro;
· conter todas as proposições necessárias, de maneira que o professor não tenha que pensar em atividades, dinâmicas, experimentos, investigações, leituras etc.

Para esse tipo de professor, tudo que ele precisa para ensinar tem que estar no livro, de preferência numa seqüência e abordagem bem tradicional, do jeito que ele já está habituado a trabalhar. Para séries do Ensino Fundamental, a expectativa é que o livro seja “fácil” – fácil para o professor entender, e de preferência fácil para os alunos entenderem, pois assim ele não terá de dar muitas explicações extras. Para o Ensino Médio e para a Universidade, a fim de se garantir uma aparência de “difícil”, o professor espera que o “livro-texto” seja volumoso, denso, enciclopédico, capaz de lhe servir de fonte de fácil acesso (assim não tem que buscar nada em outro lugar), bem como consiga ocupar o aluno o suficiente durante o curso, evitando que este desperte para perguntas, digamos, constrangedoras. Nesse caso, a idéia é que o caráter excessivamente descritivo do conteúdo de um livro “didático” deve sutilmente inibir questões que exijam muita reflexão de ambas as partes, e não demandar trabalhos mentais que vão além da aquisição dos fatos descritos nos textos. Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que ambas as posturas – em relação a livros do Ensino Fundamental e do Ensino Médio/Universidade, resultam numa aprendizagem medíocre e na deformação da capacidade de raciocínio e do senso crítico.

Evidentemente, nenhum livro é perfeito – em todos há falhas, em qualquer lugar do mundo, e se alunos e professores utilizassem os livros de forma crítica e construtiva, os bons autores e as boas editoras seriam ajudados a corrigir as falhas e as obras tornar-se-iam cada vez melhores. De qualquer maneira, o livro didático – seja ele qual for – precisa ser entendido como uma ferramenta de trabalho pedagógico, como UM dentre vários instrumentos de ensino-aprendizagem que professor e aluno utilizarão.

Todo professor, nos tempos atuais, já é para estar muito bem familiarizado com as estratégias didáticas comprovadamente capazes de conduzir o aluno da postura de “receptor” passivo de conteúdos, para a postura de agente ativo da aprendizagem. O lamentável é que, para muitas escolas, o bom aluno ainda é aquele bom memorizador e hábil repetidor de respostas prontas, já conhecidas; mas ensinar, mesmo, é tornar esse aluno um questionador, um pensador crítico, um fazedor de perguntas e um hábil buscador de novas respostas.

Para muitas escolas, o bom aluno ainda é aquele que “tira dez em tudo” (porque as provas não passam de questões extraídas ou adaptadas do conteúdo que está no livro, na apostila ou no que “foi dado em sala” e o aluno copiou no caderno), é o que enquadra-se no perfil de uma inteligência monotônica elegida pela escola, que “recebe” e aceita o “saber” repassado (sic) pelo mestre infalível; mas ensinar, mesmo, é tornar esse aluno autônomo, capaz de articular diferentes conteúdos, de desenvolver uma visão sistêmica do conhecimento, de avaliar situações-problema, de formular hipóteses, de buscar soluções criativas, de alçar vôo além das informações “transmitidas”, de ultrapassar seu próprio mestre. Ensinar, mesmo, é conseguir que o aluno aprenda a perguntar porque quer saber, e não porque pode “cair na prova”.

Quando será que as boas escolas, reputadas como tais, sentirão o peso da responsabilidade e criarão coragem para enfrentar os fatos e reverter de verdade o sistema? Quando será que estaremos todos aptos a virar tudo de ponta-cabeça e as boas escolas ousarão deixar a fácil, confortável e lucrativa “educação bancária”, tipo “linha-de-montagem”? Quando será que, em vez de apenas adotar slogans que fazem crer uma adequação às recentes mudanças, as boas escolas verdadeiramente revolucionarão suas teorias e suas práticas, passando a formar, de fato, bons alunos, bons profissionais, boas pessoas, bons pais/mães de família, bons maridos/esposas, bons amigos, bons cidadãos? Quando será...?


© Ricardo Marques, 03/08/2000

(1) Artigo publicado originalmente na Lista de Discussão (on-line) do Conselho de Educação do Ceará e enviado para o Projeto Aprendiz/Gilberto Dimenstein em 03/08/2000, onde o autor já teve outros artigos publicados.

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