terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Estupro cognitivo

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Ricardo B. Marques


Ontem (11/12/03) um amigo me ligou, tarde da noite. Jovem, ele é um excelente professor de Biologia, lecionando em duas universidades públicas locais e em cursos pré-vestibulares de vários colégios em Fortaleza; é um daqueles raros professores que, além de conhecer profissionalmente o assunto que leciona, ainda é sensível às dificuldades dos alunos nesta difícil fase da vida do imaturo adolescente, chamada vestibular. Competente, neste ano esse meu amigo assumiu também numa das maiores escolas da cidade, daquelas com milhares de alunos.

Notei que ele estava bastante preocupado, ao telefone. E me explicou: seus alunos, justamente aqueles considerados os mais “aplicados”, estavam a procurá-lo para tirar dúvidas de questões de Biologia postas por outros professores do mesmo mega-colégio como exercícios para a 2ª fase da UFC. O problema era que as questões trazidas pelos alunos não eram de vestibular. Pelo contrário, tratavam de temas complexos da Biologia, como a Engenharia Genética, num nível somente visto na graduação. Pior: algumas eram questões extraídas de livros utilizados em cursos de mestrado e doutorado, contendo detalhes que grande parte dos graduados em ciências biológicas, medicina, odontologia etc. sequer se preocupam em dominar, por saberem ser específicas demais para lhes interessar naquele nível acadêmico-universitário.

Ao ler três questões para que eu tomasse conhecimento do seu teor, percebi a gravidade do que ele estava falando. Respondi-lhe, porém, que aquilo não me causava surpresa. É que comecei minha carreira como professor escolar há 20 anos, como professor universitário há 17, e continuo inserido no meio através da pesquisa e de consultorias, e sou também professor pré-universitário em outros cursos e colégios de Fortaleza. Freqüentemente meus alunos vêm a mim com questões daquele tipo, extraídas justamente de apostilas e listas de exercícios produzidas por professores daquele mesmo mega-colégio (às vezes de outros), cedidas por colegas ou parentes que estudam por lá.

Claro, minha postura tem sido a de resolver as questões em sala de aula para sanar a curiosidade dos alunos, contudo, logo após perceber naqueles a expressão assustada devido à alta complexidade dos assuntos abordados, para os quais eles não têm (nem poderiam ter) maturidade nem conhecimento adequados, em todos os casos procuro deixar claro que aqueles assuntos e aqueles estilos de questões não são de vestibular e que eles não devem aumentar seu stress com tal tipo de coisa. Na verdade, arrisco-me a dizer que considero que casos assim são uma irresponsabilidade pedagógica cometida por colegas – esta é a minha opinião.

Ao ouvir minha experiência, meu colega aliviou sua ansiedade; porém, e de forma justa, permaneceu inconformado com o descaso que assola a educação cearense, especificamente nesse contraditório setor chamado pré-vestibular. E rapidamente identificamos a causa principal do problema: há anos o referido colégio, a exemplo do que tem se tornado comum em cursinhos e mesmo em universidades privadas por aqui, contratou professores aposentados da faculdade de medicina da UFC para lecionar no pré-vestibular. Conheço a grande competência desses mestres, pois também fui aluno deles na minha graduação – porém, de que competência um colégio precisa, assim como o aluno que quer passar no vestibular?

Esse é o problema: há muita gente competente em termos de conhecimentos acadêmicos de alto nível numa universidade, como os professores citados, mas que ignoram, por vezes com exagerada profundidade, os mais elementares princípios da Educação escolar, especialmente o contexto cognitivo e de maturidade mental/intelectual/emocional em que vivem os alunos pré-vestibulandos. De fato, não passam de adolescentes, recém saídos da infância, enquanto se exige deles, nessa área, a maturidade de um mestre. Coitados, e para piorar o professor de cada disciplina nem presta atenção a que um aluno desses tem de dar conta, simultaneamente, de uma sobrecarga de conteúdos de muitas outras áreas, a maioria “ensinada” de forma caótica, sem método nem qualidade pedagógica, sem reflexão, sem entendimento, apenas na base da exposição unidirecional.

Aliás, vezes seguidas eu já garanti aos meus alunos: “não se frustrem, vocês são bons mesmo se não passarem; saibam que dentre os professores de pré-vestibular e mesmo dentre aqueles que elaboram as provas de vestibular nas universidades, se eles mesmos fossem prestar esse concurso hoje em dia seriam reprovados, pois estes professores só sabem o que é específico daquilo que lecionam... Querem que vocês saibam tudo de tudo, o que é impossível, mas eles mesmos sabem muitíssimo de quase nada. Portanto, nem sempre não passar no vestibular é culpa de vocês, alunos”.

Pois é. Professores que não entendem de Educação. Dá para imaginar isso? Dá, sim. É só o que tem. Se perguntados sobre estágios de aprendizagem, por exemplo, ou sobre contextualização e significância do ensino, torcem o nariz. Piaget, para muitos destes, é nome de alguma grife de óculos ou de perfume; se o conhecem, é apenas de ouvir falar, ou conhecem só em teoria acadêmica, sem aplicação prática. Vygotsky? Talvez um comunista russo... Educação para o pensar? Ensino crítico? Isso é coisa dessa “educação moderna”, que “não leva a lugar nenhum...”. Para estes, “tem mais é de empurrar matéria nesses meninos...”, é o que ouço com freqüência.

Ah, claro! Não nos esqueçamos dos acadêmicos profissionais da área educacional, muitos dos quais até escreveram teses sobre Piaget, Vygotsky e outros mestres. A questão é: ponha-os na sala de aula, e podem ser um grande desastre... Por isso, preferem ficar por trás dos muros da academia, onde, sem serem incomodados pela demanda prática da competência profissional, podem lecionar para futuros professores sem se preocuparem com a realidade do que transmitem.

Estes são tristes discursos do dia a dia no meio “educacional”, especialmente nos mega-colégios particulares e nas universidades de forte apelo academicista. Minhas idas e vindas a congressos de Educação no Brasil e no mundo, conversando com educadores, professores e diretores de escolas aqui e acolá, atestaram minha desconfiança: a de que no Ceará, particularmente nessa área, estamos na pré-história. É o que comentam por aí.

É de domínio público que no Ceará a cultura de ensino ainda é aquela da “transmissão de conteúdos” e do simplório “preparo para o vestibular”, enquanto “o resto é perda de tempo”. Pensam assim professores universitários e de colégios, donos de escolas e – pasmem – pais de alunos. Isso mesmo, toda essa gente, salvo honrosas exceções. Parece uma conspiração contra o desenvolvimento e a inteligência, não é?

Claro, há muito mais o que se discutir a esse respeito, sendo este o real objetivo do presente texto: despertar para gerar mais debate e buscar-se uma solução.

Mas, para finalizar, e retornando ao assunto dos professores que há tempos vêm atormentando jovens alunos com questões sem qualquer relação com o vestibular, um agravante soma-se a toda a problemática: o desespero competitivo. Explico melhor: os cursinhos pré-vestibulares obviamente tendem a reduzir sua clientela, com o aumento do número de universidades, e isso gera mais concorrência entre os mesmos; nesse caso, alguns menos escrupulosos praticam estratégias que, embora lhes custe o equilíbrio mental de alunos, que hoje estão indo ao vestibular sob o controle de medicamentos e até de drogas menos lícitas por não agüentarem a pressão que aumenta a cada ano, dão para o aluno e para seus pais a ilusão de que aquele colégio tem um “ensino forte” para o vestibular, pois o nível das questões trabalhadas no adestramento que praticam é assustador... Mesmo que o próprio vestibular jamais chegue nem perto desse nível. Trata-se de um verdadeiro “estupro cognitivo”.

Torçamos para que o Conselho de Educação do Estado do Ceará, brilhantemente dotado de personalidades capazes de grande discernimento, seja um dos muitos atores que um dia virão à tona com propostas de avaliação e de solução, de preferência propostas mais inteligentes e justas do que propostas meramente políticas. Precisamos de uma reforma consciente, penetrante e efetiva nas estruturas e na mentalidade educacional das escolas e universidades cearenses – essa é proposta a que chamo de “inteligente e justa” –, mas temo que nada aconteça, ou que ocorra algo por demais apaziguador, do tipo que não mexe nas estruturas para não incomodar quem já costuma dar as cartas, em detrimento do certo, do justo, do honesto e do responsável – essa é a proposta a que chamo de “política”. E você, vai fazer o que a esse respeito?

[1] Texto originalmente publicado na Lista de Discussão do Conselho de Educação do Ceará, em 2003.

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