sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O Porto Seguro (sobre meu pai)

(Para o meu pai, Reginaldo, com todo o carinho e a gratidão)

Ricardo Marques, 03/2004


Tal navio-caravela,
Nos remotos tempos de além-mar,
Quando ainda pouco se sabia,
Tu te lançaste, intrépido, a navegar.

Entre vagas e calmarias,
Ventos impiedosos a enfrentar,
De espírito aventureiro, livre,
Aos mistérios perseguiste, sempre a sonhar.

Na tua ousada trajetória,
Um mundo inteiro descobriste...
Maravilhas e gloriosas vitórias
Mantiveram tua bandeira em riste.

Enxergaste, porém, da vida um outro lado...
Ao descobrir como és inteligente e ágil,
As decepções, até dores e cansaço
Te revelaram que também és frágil.

Em mapas incompletos, com vigor e coragem,
Traçaste rotas desconhecidas, em ato de fé.
Heróico, lutando contra icebergs e miragens,
Construíste um sonho real, até hoje de pé.

Esposa e filhos que valem mais que o ouro,
Casa e vestes, com o pão sempre à mesa,
De todas as fortunas é este o maior tesouro,
Nome limpo e honesto, família íntegra e coesa.

Foi assim que, acertando e errando,
Construíste o maior império de todos;
Justo aquilo que a maioria, se empenhando,
Não consegue fazer, não passando de tolos.

Meu pai, tu sabes que não são poucos,
Os que desejam ser o que és e ter o que tens;
Não desejes, pois, ser o que são estes outros,
Nem apliques teu coração em outra forma de bens.

Hoje podes olhar para trás e ver, com glória,
Os grandes e difíceis mares por que navegaste,
Os erros e acertos, as batalhas e vitórias,
Assim como os muitos tesouros que ajuntaste.

Mas agora também é tempo, meu pai, meu orgulho,
De olhares pra frente com fé e atenção,
Sabendo que lá te espera um Porto Seguro,
Um Deus que te ama e que quer tua consideração.

Há tempos, mesmo quando tua vista não percebeu,
Ele olha por ti, Ele trabalha por ti...
Há séculos Ele até por ti morreu e venceu!
Ele quer acolhê-lo, agora, Ele o quer para Si.

As cãs são uma dádiva dos céus,
É o que dizem as Escrituras,
Mesmo nem todos sabendo disso,
É nesta fase da vida que a sabedoria mais perdura.

Quão sublime é, este tempo das cãs...
Por mais que muitos, iludidos, as escondam
Por se verem levando vidas vãs,
Deus atende, alegre, aqueles que O chamam.

Chama para ti o Senhor, ó pai amado.
Pede a Ele para teu coração visitar.
Verás que nada melhor pode ser desejado,
E quão maravilhoso é a Deus amar.

Então, sejam quais forem as tribulações desta vida,
Não importa que grandes ondas dominem o mar,
Em Porto Seguro estará sempre teu navio,
Com Jesus, pleno e vitorioso será teu caminhar.


* * *


Parabéns por mais este ano, papai. Meus joelhos estarão dia e noite dobrados, em oração, agradecendo por tua vida e por tudo que deste a mim, a meus irmãos e à nossa querida mãe. E pedindo a Deus que toque seu coração para que o milagre da fé quebrante teu espírito e o traga para os braços do Altíssimo.

Com intenso amor, do seu primogênito,


Ricardo
(04/03/2004)

Um momento no Natal...

Ricardo Marques

Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Assim, subiu José da Galiléia, da cidade de Nazaré, onde morava, para a Judéia, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, a fim de se alistar com Maria, sua mulher, que estava grávida. Estando eles ali, cumpriram-se os dias em que ela havia de dar à luz, e ela deu à luz a seu primeiro Filho, envolveu-O em panos, e O deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lucas 2:1-7). Por causa do censo, a família real tem de viajar por 126 quilômetros. José caminha, enquanto Maria, no seu nono mês de gravidez, segue em cima de um burro, sentindo cada solavanco, cada sulco, cada pedra da estrada.

Ao chegar, encontram a pequena vila de Belém repleta de viajantes. A hospedaria está lotada, havendo até quem se achasse um felizardo por conseguir negociar um espaço no chão. É tarde, todos dormem, não há acomodações. Mas, felizmente, o dono da hospedaria não é mesquinho. Explica que o estábulo está também lotado com os animais pertencentes aos hóspedes, mas que apesar das condições, haveria maior privacidade lá. José olha para Maria, que está tendo uma contração. "Ficaremos no estábulo", diz sem hesitar.

Era ainda noite quando José abriu a porta do estábulo, que rangeu caracteristicamente. Ao fazê-lo, os animais, assustados com o intruso, reclamam num coro discordante. O mau cheiro era penetrante e úmido, pois se as horas eram insuficientes para o estalajadeiro cuidar de seus hóspedes, que dirá dos animais. A luz tremeluzente de uma pequena lamparina, a eles emprestada pelo dono da hospedaria, projeta na parede estranha dança de sombras. Um lugar inquietante para uma mulher prestes a dar à luz. Longe de casa, longe da família. Longe de todas as suas expectativas para quando nascesse seu primeiro filho. Mas Maria não reclama de nada. Já é um alívio ter descido do lombo do burro. Encosta-se à parede, sentindo os pés inchados, as costas doerem, e as contrações cada vez mais fortes e mais freqüentes. José corre os olhos pelo estábulo. Não há tempo a perder. Rápido. Uma manjedoura servirá como berço. O feno serviria de travesseiro. Cobertores? Cobertores? Ah, sua manta estaria ótima. Aqueles trapos dependurados ajudariam a enxugar o nenê.

Maria se contorce numa contração mais forte e pede a José que providencie um balde de água. O nascimento não seria nada fácil, nem para a mãe nem para a criança. Todos os privilégios reais se encerravam ali, numa concepção humana e natural – não era para ser diferente do normal. Um grito de dor vindo de Maria interrompe a calma daquela noite silenciosa. José está voltando, apressado, com a água transbordando do balde de madeira. O alto da cabeça já se introduz neste mundo. Gotas de suor caem pelo rosto contorcido de dor de Maria, enquanto José, a parteira mais atípica de toda a Judéia, se posta ao lado. As contrações involuntárias não são suficientes, e Maria tem de ajudar com todas as forças, quase como se Deus estivesse se recusando a vir ao mundo sem a ajuda dela. José coloca uma manta sobre Maria que, com um último esforço e longo suspiro, termina seu trabalho de parto.

Nasceu o Messias. Tem a cabeça alongada pelo caminho estreito que atravessou ao nascer. A pele ainda é clara, pois levará dias até que a pigmentação normal ocorra. Há muco nas orelhas e narinas. O líquido amniótico o envolve, deixando-o úmido e escorregadio. O Filho do Deus Supremo está preso pelo cordão umbilical a uma garota judia. O bebê está sufocado e tosse. José, instintivamente, vira-o de cabeça para baixo para que se desobstrua a garganta. Então o nenê chora.

Maria oferece o seio ao trêmulo bebê. Acomoda-o em seu peito e aquele choro tão aflito aquieta-se. A cabecinha delicada encosta-se em terreno ainda desconhecido. Será sua primeira lição. Maria pode sentir as batidas rápidas do coraçãozinho, enquanto o bebê tateia à procura do seio para mamar. O seio de uma jovenzinha alimentando o Criador. Pode algo ser mais enigmático – ou mais profundo?

José senta-se exausto, silencioso e maravilhado. O bebê termina de mamar, suspira, a Palavra divina reduzida a alguns sons ininteligíveis. Então, pela primeira vez, os olhos se fixam nos de sua mãe. A única e verdadeira Divindade, que transcende o Universo, esforçando-se para focalizar o rosto de quem lhe abrigou no ventre. A Luz do Mundo, ali, se aninhando. Os olhos de Maria enchem-se de lágrimas. Toca as delicadas mãozinhas. E mãos que um dia esculpiram o mundo enroscam-se nos dedos dela. Ela olha para José e, através de lágrimas comovidas, suas almas se encontram. José aproxima-se mais de sua amada. Cabeças juntas, admiram o pequeno Jesus, cujos olhinhos pesados começam a fechar-se. Foi um longo dia. O Rei está cansado.

Dessa maneira, sem nenhum alarde especial, Deus entrou para o lago morno da humanidade. Sem nenhuma pompa ou cerimônia. É fato que anjos se prostravam em volta, contemplando a realização do maior de todos os mistérios, a eles prenunciado desde a origem dos tempos, quando o homem afastou-se do Criador. Agora, “parte” do próprio Criador assumia forma humana. Entretanto, no lugar em que se poderiam esperar exércitos saudando o Verbo que se fez gente, havia apenas moscas. Onde seriam esperados chefes de estado, havia apenas burros, algumas vacas agitadas, um aglomerado nervoso de carneiros, um camelo preso a uma corda, e um rato de celeiro que olhava curioso e furtivo. Tudo conforme havia sido previsto e escrito, séculos e séculos antes...

Maria contava apenas com José para consolar-se de suas dores e para repartir suas alegrias. Havia, como se sabe, um coro de anjos anunciando a chegada do Salvador – mas somente para um grupo pequeno de pastores de ovelhas. É verdade também que uma estrela magnífica brilhou no céu para assinalar o lugar do nascimento dEle, mas apenas alguns sábios estrangeiros a entendiam e, vendo-a, a seguiram. Assim, na pequena vila de Belém... Numa noite silenciosa... O nascimento real do Filho de Deus aconteceu tão tranqüilamente... Enquanto o mundo todo dormia e sequer imaginava o que estava acontecendo...

Amado Jesus, embora não houvesse lugar para Ti na hospedaria, permite que hoje eu tenha no coração um lugar amplo para oferecer-Te. Apesar de não teres sido bem recebido por muitos do Teu próprio povo, permite que nesta hora eu possa receber-Te de braços abertos. Embora Belém tenha negligenciado a Ti no censo, concede-me, neste momento, a graça de estar por perto e saber que Tu és Deus, conforme o disseste de Tua própria boca. Sim, Tu és Deus... Tu, cujo único palácio era um estábulo e único trono um coxo de cavalos, cujas únicas vestes eram trapos.

De joelhos, meu Senhor, quero confessar que, como homem pecador, estou condicionado à pompa, à vaidade, ao orgulho, ao preconceito e à ostentação, coisas que nos obscurecem na aceitação de um Deus que balbucia numa manjedoura. Perdoa-me, por favor. Ajuda-me a compreender pelo menos algumas das lições que o Teu nascimento, que comemoramos hoje, tem para ensinar – que o poder de Deus não está condicionado à força, mas à fraqueza; que a verdadeira grandeza não se alcança com posses, vaidade e egoísmo, mas com resignação, com o negar-se a si mesmo, com o amor ao próximo, percebendo-se o mundo e seu sistema com outros olhos, os olhos do espírito. E ainda nos ensinas que a mais secular das coisas pode ser considerada sagrada quando Tu estás ali presente. E, quando Tu, cheio de infinito amor, ansioso pela minha Redenção eterna, parares à porta de minha casa e bater, conceda-me uma sensibilidade especial para o som daquela batida, e assim apresse-me em atendê-la. Não permita que eu te deixe esperar no frio, ou que ainda te mande para algum estábulo. Possa meu coração ser quente e acolhedor, de tal forma que, quando Tu bateres, haja sempre à tua espera um lugar digno de Ti...