terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Do cockpit ao pit stop

A arte de aprender a ver... Enquanto é tempo.

(1)


Ricardo B. Marques


Estava eu meditando sobre o livro de Eclesiastes, na Bíblia, revendo sua mensagem sobre a canseira da vida, e sempre me espanta a rude verdade de que muito do que fazemos não passa de correr atrás do vento. Li isso muitas vezes, mas essa pareceu ser diferente – me detive mais tempo nela do que de costume...

Com 42 anos, surpreendo-me diante do típico despertar que parece acometer quem gosta de refletir, quem não vive só no "piloto automático". Falo de gente que passa por cima de tudo e de todos numa febril correria, sem se importar em parar para ver tudo que, além de bonito para contemplar, está por aí, espalhado, para nos ensinar. Acho que agora começo a entender, de verdade, o que Jesus queria dizer quando falava: "quem tem olhos para ver, veja; quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Quantos de nós vê e não enxerga, não é mesmo?

Tantos de nós passamos pela vida superativos, como um piloto num carro de corrida, adrenalina borbulhando no sangue, porém do cockpit só se vê algumas manchas; enquanto isso, perde-se maravilhosas paisagens [da vida] para se curtir, e se deixa de ler os enormes "outdoors" nelas entranhados, com importantes mensagens [de vida] escritas. Isso porque, numa vida de carro de corrida, não podemos [não queremos] parar para enxergar, senão "perdemos" a linha de chegada – que parece nunca chegar. Seria mais um dos muitos engodos dessa vida?

Parei no pit stop, enquanto era tempo. Desci e não volto mais pro carro, talvez sob o protesto de alguns torcedores que não entendem bem o que está acontecendo. Revejo minha trajetória como homem, como cristão, como marido, como pai e como profissional, sob olhos atentos de um espírito mais meticuloso que Deus nos constrói interiormente, ao longo dessa curta existência (dizem que é entre os 40 e os 50 anos que atingimos o ápice da percepção e da sensibilidade...). No rastro de Eclesiastes, o que vale mesmo a pena nessa vida?

Fiz de tudo um pouco. Determinado, realizei a maioria dos meus sonhos de infância e adolescência. Vi e experimentei coisas que a maioria sequer suspeita existirem, e que muitos só vêem em filme, pensando não passar de ficção. Algumas eu posso até contar. Querem saber? Se prometerem não acharem chato, então lá vai...

Por exemplo, estudei e pratiquei – só para satisfazer curiosidade e desejo – violoncelo, violão, clarinete, saxofone, gaita e percussão. Antes de tornar-me cristão, fui ateu, médium e mago. Já como cristão, convertido, passei por todos os estágios que alguém pode experimentar, dentro e fora da igreja, estudando, buscando, crescendo, tropeçando, ajudando muita gente e sendo ajudado por igual tanto. Ensinei e ensino na igreja, dirigi cultos e louvores, toquei instrumentos, ministrei aconselhamentos, liderei grupos... Também me tornei cientista – demais, não? Até me embrenhei na selva amazônica vezes seguidas, e passei por coisas que dariam um livro, se escritas – de índios a mapinguari, de areia movediça a perdido na mata. Desde menino, pratiquei várias artes marciais, começando com judô, passando pelo jiu-jitsu, até encontrar o karatê, que foi onde conquistei a faixa-preta; depois experimentei o kung-fu, mas hoje, pratico jeet kune do (a luta criado pelo lendário Bruce Lee) e também wing-tzun, junto com minha família, uma modalidade de defesa pessoal usada no FBI a na SWAT (tá certo, podem me chamar de maluco, eu não ligo...).

Ah, sim! Fui astrônomo amador e, parece mentira, até pra NASA fiz trabalhos. Na arqueologia, não foram poucas as investigações e escavações. Como paleontólogo em formação, participei de expedições à cata de rastros de dinossauros que habitaram o Nordeste brasileiro, com o privilégio de acompanhar, em campo, um dos maiores especialistas do mundo nessa área. Mas o "quente" mesmo foi quando virei educador, uma paixão antiga. Estudei e ensinei um bocado de coisa, não foi só Biologia, não. Da lógica à ética, da ciência às artes, lecionei para crianças, jovens e adultos durante mais de 20 anos (e continuo). Porém, aprendi mais com eles do que eles comigo, acreditem.

Aí, imaginem só, me casei, e com a pessoa certa, amor daqueles arrebatadores e eternos. Hoje, somos pais de dois filhos maravilhosos... Mais recentemente (há alguns anos) acabei me metendo com administração, um desafio que me chamava há tempos e que eu fingia não ver, mas hoje parte do meu tempo é bem tomada por isso. E última? Sempre sonhei em ser escoteiro, o que não consegui na infância; mas agora tenho um filho que é “lobinho” (condecoradíssimo), e eu... Bem, sou “mestre pioneiro” – eles me laçaram por lá. Tá bom, tá bom, não vou encompridar mais a lista, mas que teria muito mais coisa, teria. Só que, se eu continuar, corro o risco de vê-los interrompendo a leitura por aqui, né? Porque assim não tem quem agüente...

Pois é, estou repassando tudo isso no meu espírito, e venho enxergando muita coisa que eu não via tão claramente do cockpit do carro de fórmula 1 [da vida]. Fruto de amadurecimento gradativo? Não tem como negar, ninguém pára no tempo e no espaço sem crescer. Mas não é só isso, não. É aquilo que falei, é reflexão, meditação e contemplação, com o objetivo de aprender mais um pouco – principalmente sobre mim mesmo.

E o que descobri, até agora? Descobri que estou aprendendo a ver. Parece estranho, mas é isso aí. Eu até pensei que sabia ver, mas era ilusão, coisa de adulto. Agora é que estou começando a enxergar de fato, do jeito que acho que deve ser mesmo – como coisa de menino. Palavras de Jesus: “Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mateus 18:3).

Sabe, gente, passei muitos anos ensinando em universidades e em escolas, e, entre tantos assuntos, o que mais ensinei foi Biologia. É bacana ouvir alunos dizendo que você, como professor, teve papel decisivo em descortinar o que para eles, antes, pareciam coisas misteriosas e incompreensíveis do enigmático mundo da Ciência. Porém, é mais bacana ainda ouvir alunos e ex-alunos dizendo que você, como pessoa, teve papel marcante na formação de seus valores, de seu caráter, de seu equilíbrio emocional, de suas convicções, de suas livres escolhas em meio a esse emaranhado caótico de descaminhos que todo dia se amontoam por aí, causando confusão até nas cabeças dos que se pensam mais amadurecidos.

Pois é, estou meio cansado de ensinar tecnicismos, de mostrar caminhos já delineados e conhecidos, de apontar respostas a quem não faz perguntas, de transmitir saberes que estão em qualquer livro, mesmo que mal explicados. Eu queria tirar longas férias de ensinar, a jovens sedentos e no auge de suas vigorosas vidas, coisas como essa de que "um gene no DNA transcreve sua informação codificada em bases nitrogenadas para um RNAm, que após perder seus íntrons no splicing, torna-se funcional e migra para um ribossomo, onde os RNAt traduzem a informação nucleotídica inserindo aminoácidos específicos, construindo uma cadeia polipeptídica que determinará muitas das nossas características físicas e psíquicas". Santa paciência, isso deveria ser deixado para quando esse jovem fosse formar-se biólogo ou médico – SE fosse uma dessas a profissão escolhida por ele.

No âmago da dita reflexão, o que minha alma pede ao meu intelecto é que eu tire férias de ensinar essas coisas – aliás, que eu tire férias de ensinar, seja lá o que for. Não no sentido de abandonar meus alunos e deixar a sala de aula, não é isso. Mas é que minha vontade agora é, enquanto continuo aprendendo, me tornar um professor que não tem nada pra ensinar, mas apenas servir de ajuda a quem tem olhos, mas ainda não consegue ver. Eu queria, mesmo, era ajudar outros a enxergarem e se admirarem com o que já está fartamente disponível à nossa volta, mas que poucos vêem. Estou em processo de deslumbramento, logo meu maior interesse é querer compartilhar com quem ainda não se deslumbrou.

Escrevi essa reflexão numa madrugada, há algumas semanas, pouco depois de ter penado muito para concluir e defender uma tese na universidade, sobre Gestão do Conhecimento aplicada ao Desenvolvimento Sustentável, tema escolhido por mim e que se revelou uma autêntica sarna que até agora me produz coceiras insistentes. Até que hoje me surpreendi quando um colega educador me enviou um texto do Rubem Alves. Olha só o título: "A Complicada Arte de Ver". Depois de ler, me derreti – à parte de uma ou outra mazela do Rubem, de quem sou grande admirador e de quem vivo discordando e concordando, a essência do texto é magnífica e, é claro, combina a fundo justamente com esse meu momento. Seria "um aviso", como dizem os matutos, de que estou no caminho certo?

Brincadeiras à parte, de uma coisa estou convicto: doravante, vou preparar minhas "férias", e a partir de agora, a cada dia, quero me dedicar mais a aprender e a ensinar a ver. E a nos assombrarmos com as maravilhas que nossos olhos perdem, enquanto estamos embotados pela turva visão que se tem de dentro do cockpit.

Vamos lá, pare comigo no pit stop, e saiamos correndo, enquanto os neuróticos trocam os pneus...


(1) Texto publicado originalmente na Lista de Discussão do Conselho de Educação do Ceará, em 2004.

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