terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Ensino Tradicional e o “abismo” entre discurso e prática (1)

Ricardo B. Marques (2)
© 1997; 1999; 2006


Fortaleza é uma das cidades brasileiras com maior concentração de escolas particulares. Muitas fizeram nome, seja pelo rigor de um “ensino forte”, seja pela fama de boas preparadoras para o vestibular. E, em muitos casos, tal mérito é justificado. Numa sociedade tradicionalista como a cearense, escolas assim não têm problemas para preencher suas vagas. Na busca de um colégio para os filhos, o que vem logo à cabeça de muitos pais é: “quem é que tem nome e tradição”?, ou “quem é que faz o aluno passar no vestibular?”. De certa forma, valores como esses têm seu lugar e importância numa comunidade.

Mas a Educação tem várias facetas. É um mundo de aparências e incoerências, onde “bom” e “ruim” tornam-se conceitos aparentemente relativos e de difícil definição. Foi sobre esse “perigo” que me pediram para falar, como pretenso educador. Tentarei ilustrar com um exemplo.

Certa vez um casal procurou-me, buscando conselho. O pai estava confuso sobre a situação do filho num tradicional colégio de Fortaleza. Ouvira dizer que ali se praticava um ensino “forte” e “rigoroso” (o que é isso, mesmo?), e decidiu matricular o garoto. Dois anos depois, o rapaz apresentava um desempenho ruim, e professores já haviam-no taxado de “vagabundo”.

Usando de cautela para evitar maior desgaste entre os pais e a escola, sugeri-lhes que procurassem conhecer melhor a proposta pedagógica da mesma: a filosofia educacional do estabelecimento; seus métodos e técnicas; preparo dos professores para lidar com as nuanças dos processos de aprendizagem etc. Era necessário estabelecer se havia problemas no sistema adotado.

Embora nem sempre concordantes, os teóricos da Educação trabalharam bastante na elaboração de diversos recursos para se aplicar em casos em que o aluno pode ser uma vítima do sistema. Ainda que parte desses recursos sejam difíceis de aplicar no sistema das escolas brasileiras, lembrei àqueles pais que também perguntassem aos profissionais do Colégio se já haviam esgotado pelo menos aqueles que lhes estavam ao alcance e dentro da sua realidade possível.

Nos encontramos novamente, dias depois. Os pais haviam procurado a direção da escola, levantando todos aqueles pontos. Curiosamente, ouviram o discurso de que o Colégio – quase centenário –, simpatizava com o “construtivismo”, trabalhava o “raciocínio” dos alunos, as abordagens eram “práticas” e as atividades, “interdisciplinares” (etc.). Os professores, no dizer da escola, eram todos bem preparados; alguns até haviam feito um curso com uma pessoa da Universidade sobre construtivismo. Informados disso (sic), os pais começavam a se perguntar se o menino não seria mesmo “burro”...

Meio surpreso com o novo discurso usado por aquela escola, que até então era famosa por manter-se apegada a um ensino tradicionalíssimo, resolvi visitar aquele estabelecimento na semana seguinte, aproveitando para “matar” a saudade de antigos colegas com quem eu já havia trabalhado em outros Colégios. Logo após o recreio, acompanhei um professor a uma sala de 7ª série, onde ele lecionava Ciências.

A aula foi puramente na base do “quadro e giz”. Um monólogo de 50 minutos, entremeado por alguns rabiscos na lousa. A fala do mestre era só para um grupo de 5 ou 6 alunos que sentara-se próximo dele. Outros 45 se ocupavam com gibis, desenhos, troca de bilhetes, bate-papos “paralelos” e alguns até dormiam. O tema da aula era um assunto palpitante, mas naquelas circunstâncias o resultado era enfadonho, causado por um palavreado rocambolesco, cheio de terminologias a serem memorizadas, distantes do universo concreto do aluno. Bocejei, tentando disfarçar a inconveniência do ato.

Enquanto isso, na sala ao lado, outro professor ministrava uma aula de Matemática , em voz tão alta que pude perceber do que se tratava. Pedi licença e ausentei-me da sala em que estava, dirigindo-me à vizinha. Chegando lá, escorei-me na janela, como quem estava apenas de passagem e resolveu dar uma paradinha. O professor, de costas, não me viu. Discutia com um aluno sobre a prova:

– “Mas professor, a resposta não está correta? Eu usei um caminho alternativo, que é válido...”

– “Não interessa! Você não usou o método que eu ensinei! É zero!” Virou-se e falou para todos:

– “Vamos continuar a aula! Se vocês não aprenderem isso, vão todos ‘se lascar’ no vestibular, daqui uns anos!” E, de costas para a turma, foi escrevendo no quadro, enquanto gritava:

– “O nome deste símbolo é FATOOO...?” – “...RIAAAL!”, completavam os alunos.

Lembrei-me de uma experiência contada por Rodolpho Caniato, numa escola cujas autoridades diziam temer que seu treinamento em ensino de Ciências prejudicasse o “enfoque piagetiano” do estabelecimento, quando, na realidade da sala de aula, não havia enfoque algum. Piagetiano mesmo era o Rodolpho, intencionalmente ou não. A escola não passava de uma formadora de robôs, e temia que a prática daquele treinador de professores revelasse isso.

Para não parecer hipócrita, no mesmo dia expus minha opinião àqueles colegas, obtendo deles razoável aceitação das críticas. Mas saí dali com uma convicção reforçada: o “abismo” entre o discurso e a prática. Não quero afirmar que os profissionais daquela escola não desejassem o construtivismo como modelo pedagógico. É possível até que tenham tido a intenção de adotá-lo. Contudo, numa ótica um pouco mais realista, um simples olhar na sala de aula permitia notar que nada havia de construtivismo, ensino crítico, estímulo ao raciocínio, abordagem prática e interdisciplinar e, principalmente, os professores demonstraram estar despreparados para lidar com uma pedagogia moderna e dinâmica. Afinal, ali, assim como em tantas outras escolas, chega-se ao cúmulo de crianças de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental serem submetidas a provas com perfuração de cartões, a fim de serem “treinadas” desde cedo para o vestibular...

De quem seria a culpa? Das Universidades, que “formam” mal o professor? Do professor, que não faz o que a escola “manda”? Da escola, que adota jargões educacionais, mas não os pratica? Ou do governo, que investe em educação tecnicista e desvaloriza a pesquisa e a cultura? Quem sabe não é do aluno, que pode ter nascido com “bloqueio mental”? No caso do garoto “burro” de quem falamos anteriormente, talvez possa se acusar os pais, por não o terem matriculado desde cedo naquela escola de ensino “forte”...

Nesse nível não interessa a culpa. O problema é que o serviço educacional que se oferece nem sempre é o que se pratica. Não só porque uma pedagogia mais competente é também mais difícil de administrar, mas porque talvez ela não faça parte dos reais princípios que norteiam muitas escolas. Promete-se educação de qualidade, mas o que se faz são treinamentos. Em vez de pensadores, forma-se repetidores. Fala-se de ensino “forte” – o que é isso, mesmo? – , mas apenas produz-se autômatos programados para o vestibular.

Não estou defendendo que professor e escola sejam sempre os culpados de todo mau rendimento de aluno. Mas estou há décadas engajado num projeto de um Colégio sério, ajudando a traçar cuidadosamente sua filosofia; considerando pontos fortes e fracos das teorias educacionais para construir uma proposta sólida; avaliando aspectos práticos de sala de aula; aprendendo a lidar com a (de)formação de alguns professores e treinando-os sistematicamente; investindo na visão da família como elemento básico do trabalho educacional; investigando as influências diversas que afetam a aprendizagem; reconstruindo planos e currículos; elaborando recursos didáticos alternativos; trabalhando com turmas reduzidas; diminuindo ao máximo a margem de lucro; lidando com pais que não entendem a Ciência da Educação; considerando o ato de “pensar bem e criticamente” como a base para o sucesso em quaisquer áreas da vida, inclusive a profissional... Sem falar num ótimo preparo, também (e não apenas), para o vestibular. Mas, em todo esse tempo, ainda não estamos satisfeitos. Talvez estejamos apenas beirando o “rodapé” do ideal. Portanto, não será a adoção de jargões da moda, outdoors ou slogans estampados na entrada da escola que determinará se ela realiza bem, ou não, sua função de EDUCAR, na acepção correta do termo.

Enquanto professores e escolas, apesar do discurso, mantêm-se com uma postura pedagógica inconsistente, os alunos tornam-se meros reprodutores de um mundo de informações cada vez mais difícil de dominar, e sem aplicação à realidade dele e da sociedade em que está inserido. Pior: pais e alunos estão habituando-se a esse merchandising. A tal ponto que começam a acreditar que é esse tipo de “ensino” massificado, reducionista, robotizado, mercantilista, acrítico, “decoreba” como se costuma dizer por aqui, que é o ideal, pois supostamente faz passar no vestibular. O genuíno desenvolvimento da capacidade de pensar, do senso crítico, do raciocínio lógico, das habilidades cognitivas e sensório-motoras, do saber fazer, do pensar melhor, a formação do caráter... estes aspectos parecem poder ficar de lado, desde que sejam citados ao menos como slogans fictícios, no intuito de manter a aparência da escola como pedagogicamente moderna. Na essência, mesmo, o que se faz por aí é perpetuar um ensino tipo “linha de produção”, uma educação “receita de bolo”. Enquanto isso, os aspectos que realmente importam numa Educação comprometida são vistos, até pelos pais, como “secundários”, coisas de ensino “fraco” – aliás, o que é isso, mesmo?

(1) Artigo publicado originalmente no jornal Tribuna do Ceará (1997)
e no site do Projeto Aprendiz
http://www.uol.com.br/aprendiz/forum/colun193.html), fev/1999.

(2) Ricardo B. Marques é biólogo, educador, escritor e conferencista. Paleontólogo, cadastrado no Directory of Palaeontolgists of the World. Zoólogo, cadastrado no World Directory of Primatologists, membro da American Society of Mammalogists , da Sociedade Brasileira de Zoologia e da Sociedade Nordestina de Zoologia. Herpetólogo, registrado no CNAAR Directory of Herpetologists e The Center for North America Herpetology; integra o Directorio Herpetologico Neotropical – Grupo Especialista en Reptiles y Anfibios Sudamericanos. Mestre em Ciência (2004). Formação em Neurociências e Comportamento pela SBNeC (Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento, ex-SBPb - Sociedade Brasileira de Psicobiologia, 1987), e em Administração Escolar pela Pensacola C. University (Florida, EUA, 1994). Perito em Biologia Forense, membro da International Association of Crime Scene Investigators (IACSI, USA). Analista de Inteligência, membro da Associação Brasileira dos Analistas de Inteligência Competitiva (ABRAIC). Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Gestão do Conhecimento (SBGC/Pólo-CE). Professor de Gestão do Conhecimento e Inteligência Competitiva no curso de Pós-Graduação em Gestão de Negócios, Faculdade Christus. Consultor Técnico do CGECon – Centro de Gestão Estratégica do Conhecimento em Ciência e Tecnologia, Ministério das Relações Exteriores, Governo Federal (http://www.cgecon.mre.gov.br/). Membro da American Society for Biochemistry and Molecular Biology (ASBMB), USA. Um dos fundadores e atual Diretor-Geral do Colégio Kerigma.

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