terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Educação: a arte do assombro

Ricardo B. Marques


Durante anos trabalhei nas entranhas da floresta amazônica, explorando regiões inóspitas acessíveis somente por barcos, pelos igarapés e dias de caminhada. Bons tempos, de experiências e aprendizado que nenhuma formação acadêmica jamais poderia dar a alguém. Como seria de se esperar, deparei-me com diferentes tipos de animais, em meio àquela biodiversidade que é uma das maiores do planeta. Um desses foi a anta, o maior mamífero da América do Sul, podendo atingir 300 kg e medir mais de 2 metros.

Anta é um bicho interessante. Pacato, quase não tem defesa contra a onça, seu principal predador. Esse medo a impede de conhecer mais a floresta, de explorá-la, pois para se proteger adota a estratégia de andar sempre por uma mesma trilha na mata. A anta até tenta se defender, fazendo sua trilha, em algum momento, passar por baixo de um galho de árvore; se a onça lhe pular nas costas, cravando suas garras, a anta corre pelo caminho de sempre, até que passa sob o galho – a onça leva uma pancada e se solta, enquanto a presa aproveita para tentar fugir. Mesmo assim, nem para se defender a anta sai da trilha.

Árvores imensas também são belezas que se destacam na Amazônia. Numa de nossas expedições, eu e minha equipe, que na ocasião eram seis pessoas, não conseguimos, juntos, abraçar uma sumaúma. Imponentes vegetais, não poucas daquelas árvores atingem mais de 50 metros de altura, as copas se encontrando muito acima de nós, fechando-se num teto de densa folhagem, a nos fazer sentir como ao entardecer, estando em pleno meio-dia. Em volta delas, profusão de coloridas e sonoras aves, e macacos curiosos, a nos observarem. Cada árvore, um verdadeiro mundo de tênue equilíbrio, de assombrosa riqueza, de notável deslumbramento. Impossível ver e não sentir; vivenciar e não se importar. Compreensível, pois, quando tantos bradam contra sua destruição.

Mas conheci gente que foi ali e nada viu. Para eles, “só tem bicho e mato”, coisa “sem serventia”. Perderam, estes, a faculdade do sentir. Vêem, mas não enxergam; logo, não se importam.

Atitudes como as de “tanto faz”, do “nada posso fazer” ou do “não é comigo” ilustram o cerne de quase todo problema social, que, por sua vez, deriva do problema educacional.

Existe uma realidade que impressiona, está lá, está aqui, à nossa volta. Mas tem gente que já perdeu o que chamo de a arte do assombro. Há quem passe diante de uma árvore que floresce e não se impressiona, não se deixa impactar com o milagre que ali se presencia; igualmente, há multidões que vivem em meio a uma grave crise social, onde há desigualdade, fome, injustiça, doença, abandono, violência, sofrimento, ignorância... E são, a tudo isso, indiferentes. Vivem em pequenos mundos, encasteladas, reféns de sua insensibilidade e de seus medos.

Trabalhar com educação tem uma exigência: temos que ser capazes de nos assombrar com tudo de bom e de ruim que está aí para ser visto e percebido.

Precisamos nos importar, mesmo em tempo de tantas desconfianças. Mesmo em meio a tanto descaso e corrupção. Mesmo quando falta ética e honestidade. Mesmo quando há tantos lobos no aprisco. Mesmo quando se ouve notícias de que a desigualdade aumenta, e que os ricos – cada vez em menor número – esbanjam cada vez mais, enquanto a classe média vira pobre, e os pobres, miseráveis. Pois, se você se importa, é capaz de voltar a confiar. Se você se importa, consegue enfrentar o descaso e a corrupção. Se você se importa, será ético e honesto. Se você se importa, esbanjará menos e compartilhará mais. Se você se importa, será mais sensível e menos egocêntrico. Se você se importa, encontrará forças para dominar os lobos e proteger os cordeiros.

Ver e enxergar. Enxergar e sentir. Sentir e decidir. Decidir e fazer. Essa é a arte do assombro, que desperta a alma, provoca a intervenção e causa transformação. Essa é a nossa missão.

Parafraseando Rubem Alves, a sociedade vive a formar antas: gente que não tem coragem de sair de suas trilhas de sempre, com medo da onça. Pessoas que entendem tudo sobre suas trilhas bem demarcadas, daquilo sabem os mínimos detalhes. Só que toda a imensidão da floresta à sua volta lhes é desconhecida. O Colégio Kerigma, em Fortaleza (CE), há quase 20 anos existe para ir além das trilhas e compreender essa floresta. E, compreendendo, dar tudo de si para torná-la melhor.

2 comentários:

Salomão Soares disse...

Ricardo que atual seu artigo.



Infelizmente estamos vivendo como antas a anos. Saliento duas questões:



PRIMEIRA: Há aqueles que na busca inveterada de "experimentar" os sabores da vida acabam perdendo a sensibilidade e assim mergulham num paradigma onde se filtra automaticamente tudo que pode ser constrangedor, desafiador (de seus próprios conceitos), etc. Formando para si mesmo um sub-mundo onde as sensações desagradáveis e/ou boas porém estranhas a esse sub-mundo, são simplesmente ignoradas. Realmente eles estão cegos a essas realidades pois não há tempo hábil para tal. O viver "o agora" suplanta qualquer necessidade de outrem. Esse tipo de pessoa só acorda para as realidades da vida quando é impactado diretamente por elas e esse impacto atua nas áreas que ele próprio elegeu como intocáveis.



SEGUNDO: Há outrora diversos homens e mulheres que tiveram sua mente cauterizada pela vida e por suas escolhas. Assim resolveram estar e viver. Pois para tal o melhor é o que é BOM para mim e não o BEM comum. Para estes a vida alheia tem que ser negociada sempre com suas escolhas e projetos. Só há movimento na direção de ajudar se seu projeto necessitar ou ainda para manter as aparências. Assim alavancam todo tipo de esforço para alcançar seus objetivos tornando os outros meros coadjuvantes manipuláveis para alcançar seu intento.



Esse engodo é geral! Se houver a mais simples introspecção veremos que de vez em quando estamos no mesmo caldo de intenções. Andando conforme meu egoísmo que vestido de "auto-suficiência" e "espírito determinado" domam a tudo e todos. Isso faz parte do espírito desse mundo. Onde os fracos não tem vez e estão "ao largo", junto aos mendigos da mente e da vida, na sarjeta da sociedade.



Assim como a "velocidade da vida", a busca insaciável por "satisfação" cria esse Novo-Homem que exprime tudo de canalha, podre, imoral, covarde, controvertido, corrupto, e tantos outros atributos. Esse novo-homem tem sido levantado na sociedade de hoje como líder, conselheiro financeiro, guru de administração, político, legislador, etc. Engraçado é ver a comoção da sociedade quando mais um escândalo aparece nos noticiários. Todos reclamam do ícone em questão, mas no dia-a-dia, são poucos os que não fazem uso da mesma carapaça tornando-se como ele um cara-de-pau. Pois se encararmos que a onça não pega todas as antas, é até legal ser ANTA. O que não dá é ser a ANTA da vez, não é?



Escuto as palavras de Jesus nesse momento falando para nós, que como os sacerdotes da época agiam: "Raça de víboras! quem lhes livrará da ira vindoura?"



Obrigado Ricardo, por se fazer voz e vez em meio a um veículo tão popular como o jornal O Povo, para com discernimento falar sobre nossas podres entranhas.



Abraços MIL, mentor e amigo!



Salomão Soares

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom